Tim Burton traduz Lewis Carroll para o mundo tecnológico – e perde a magia.
O que acontece quando a excentricidade do diretor americano Tim Burton encontra o nonsense do escritor inglês Lewis Carroll? Em primeiro lugar, o País das Maravilhas (Wonderland) jamais existiu. Alice entendeu errado. Depois de cair no buraco do Coelho Branco, ela encontra uma terra parecida com a inventada por Carroll em 1865, mas que se chama Mundo Subterrâneo (Underland). Além disso, a história, antes protagonizada por uma menina, agora tem como heroína uma jovem de 19 anos às vésperas do casamento. Estranhou? Espere então para ver o desfile de efeitos digitais, cenas de batalha e a chuva de objetos que pulam da tela de Alice no País das Maravilhas, que vai estrear no dia 21. A segunda versão da Disney para a fábula de Carroll leva uma das narrativas mais influentes da cultura pop ao horizonte tecnológico. No caminho, porém, abandona algumas de suas maravilhas.
Em seu primeiro fim de semana de exibição, em março, Alice arrecadou US$ 116 milhões só nos Estados Unidos. Tornou-se, assim, a maior estreia de um filme 3-D da história. Até agora, foram US$ 749 milhões recolhidos no mundo todo. Longe de alcançar a unanimidade da crítica (“cansativo, espalhafatoso e periodicamente divertido”, disse o jornal The New York Times), o longa-metragem uniu diferentes atrativos que garantiram seu sucesso comercial. Além da enorme campanha de marketing que envolveu a franquia de produtos – de jogos de baralho a joias sob encomenda –, o filme contou com dois dos mais admirados artistas de cinema do momento.
Tim Burton – de Batman, Peixe Grande, A fantástica fábrica de chocolate –, um dos poucos diretores autorais de Hollywood, goza de um prestígio internacional crescente. No ano passado, o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, organizou a exposição Tim Burton, a maior dedicada pela instituição à obra de um cineasta, com mais de 700 peças, entre desenhos, maquetes, figurinos e fotografias (vai até o dia 26 deste mês). É a consagração de sua estética sombria, marcada pelo uso de formas góticas, listras e cores escuras.
Para atuar em Alice, Burton convidou, é claro, seu amigo Johnny Depp. Os dois começaram a trabalhar juntos no filme punk e comovente Edward mãos de tesoura, de 1990. Hoje, Depp é um dos artistas favoritos do estúdio Disney. Seu carisma e sua interpretação são responsáveis pelo sucesso de filmes da série Piratas do Caribe. Em Alice, o Chapeleiro Maluco de Depp é muito mais que um mero coadjuvante, como originalmente descrito na obra de Lewis Carroll (1832-1898). Ele é a figura central do roteiro, tornando-se confidente de Alice e fiel companheiro na batalha final.
Dar aos personagens maior importância do que às participações breves descritas originalmente por Carroll foi o ponto de partida da produção. “Tentamos dar uma loucura particular e mais profunda para cada personagem”, disse Burton no evento de divulgação do longa-metragem em Los Angeles (leia a entrevista na próxima página). A estratégia foi levada com grande liberdade a ponto de alterar a essência de alguns personagens. A confusão enervante do Chapeleiro Maluco se transformou em determinação benfeitora de um fashionista extravagante, de olhos aumentados por computador em 10%. Antes uma figura terrivelmente assustadora, a Rainha de Copas, interpretada por Helena Bonham Carter (mulher de Burton), é responsável pelos melhores momentos cômicos do longa. A personagem também recebeu tratamento computadorizado, que fez sua cabeça aumentar consideravelmente.
Os dois atores são a atração dramática do filme. Assim como no longa de animação de 1951 da Disney, Burton mistura personagens do livro Alice no País das Maravilhas e de sua continuação, Alice através do espelho. Os gêmeos Tweedledum e Tweedledee e a Rainha Branca, vivida por Anne Hathaway, vieram do segundo volume. O uso da tecnologia, porém, rouba a cena. Pouco acostumado com a mistura de animação, CGI e filmagem sobre cenários inexistentes, Tim Burton deu um salto ousado em sua carreira. Talvez tenha se deixado levar pelas exigências contratuais. Durante as entrevistas que concedeu no ano passado, antes de finalizar o filme, ele se mostrou mal-humorado e nem um pouco receptivo ao processo tecnológico a que a edição foi submetida. Vestido de preto, como de costume, resmungou e interrompeu suas frases, repetindo informações como se tivesse sido pautado. Ele talvez não tenha gostado da prioridade dada a esse aspecto do filme, que esbanja efeitos não só em personagens como também em cenários (apenas dois não foram construídos por computador) e nas cenas de ação. Em 3-D, a profundidade chega a confundir o espectador, perdido na enxurrada de detalhes das cenas. O aspecto tridimensional foi produzido posteriormente, no estúdio. “A escolha pela filmagem em 2-D se deve ao curtíssimo prazo que tivemos para sua realização”, disse o diretor.
Com tanta parafernália visual, o roteiro ficou em segundo plano. Após a apresentação de Alice aos 6 anos como uma garota perturbada por pesadelos em que animais falam, damos um pulo de 13 anos no tempo. Alice é interpretada pela jovem australiana Mia Wasikowska, de 20 anos. Na entrevista que deu a ÉPOCA, de cabelos curtos, vestida de renda, Mia parecia muito diferente da Alice que representou. Delicada e falando baixinho, contou que o corte de cabelo foi feito para sua participação em Restless (Inquieto), o novo filme de Gus Van Sant, a estrear em 2011.
Na fantasia de Burton, Alice se converte em uma
precursora das feministas da Inglaterra vitoriana.
Sua versão para Alice é quase neutra, sem os cacoetes vitorianos que a personagem poderia sugerir. No filme, Alice se vê pressionada para casar com o filho sem graça do sócio de seu pai, já morto. É quando o Coelho Branco a atrai para o Mundo Subterrâneo, onde ela encontra as criaturas que a amedrontaram nos sonhos da infância. Elas duvidam que Alice seja mesmo Alice. E, a cada personagem que aparece, a questão é novamente colocada. Nesse mundo fantástico, Alice se converte em uma guerreira armada de uma espada mágica – uma precursora das feministas da Inglaterra vitoriana, criada pela roteirista Linda Woolverton (de O Rei Leão).
A obra de Lewis Carroll oferece um tipo de narrativa em que as pessoas projetam sua própria concepção de mundo. Há décadas ela se presta a reapropriações. São ao menos 25 versões apenas em filme. Cada uma delas externa as crenças e ideias de seu próprio tempo (leia o quadro ao lado). Na década de 60, as aventuras de Alice foram apropriadas pelo movimento hippie e interpretadas como uma experiência lisérgica da protagonista. Assim, o sucesso de Tim Burton não é apenas por acaso. Sua Alice espelha o momento atual da arte, em que a criatividade se submete à imagem e à tecnologia. O que resta, assim, é a ação. Ela ocorre em Alice como num filme de super-herói. A batalha final, mais violenta que o habitual estilo Disney, também diz muito sobre a celebração da violência de nossos dias. A alegoria e os jogos de palavras propostos por Carroll perdem sua força – como a demonstrar que o mundo de hoje não está interessado no mistério e na sutileza da ironia.
O Chapeleiro Maluco, Alice e a Rainha Branca (Anne Hathaway) viram guerreiros no longa de Tim Burton. Os melhores momentos cômicos ficam por conta de Helena Bonham Carter, como a Rainha de Copas (abaixo)
Fonte: Revista Época
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